Enquanto voava das terras quentes até aos incríveis 11 Celsius de POA, fui debulhando e amando o incrível vídeo-palestra do Peter Pál Perbart, na
27ª Bienal de São Paulo (realizada em 4 de agosto de 2006), sobre o texto do Roland Barthes (“Comment vivre ensemble”/Como viver junto).
Obviamente que sei que você é espertinha, que você é espertinho e já sabe que passei o audiovisual para um mp3 da vida né. Nessa minha proposital falta de banda larga, escassez de internet móvel, rearranjar os formatos é fundamental para manter a produção intelectual.
Vamos então soltar uma fatia desse delicado e delicioso bolo de quase 10 anos atrás?
“É hora de voltar a Deleuze: que solidão absoluta é essa que Deleuze reivindica, por exemplo, quando se refere a Nietzsche, Kafka, Godard e tantos outros? Diz ele, é a solidão o mais povoada do mundo, o que o interessa é que do fundo dessa solidão se possa multiplicar os encontros, não necessariamente com pessoas, mas também com movimentos, com idéias, com acontecimentos, com entidades. Diz Deleuze: “Nós somos desertos, mas povoados de tribos, passamos nosso tempo arrumando essas tribos, dispondo-as de outro modo, eliminando algumas delas, fazendo prosperar outras e todos esses povoados, todas essas multidões não impedem o deserto que é nossa própria ascese, ao contrário, essas tribos, multidões habitam este deserto, passam por ele, passam sobre ele. O deserto – a experimentação sobre si mesmo é a nossa única identidade, nossa única chance para todas as combinações que nos habitam”.”
Se ainda não conquistei vocês, com essa nesga audiovisual do Peter Pál Perbart, então jamais conquistarei né 🙂
Para quem não conhece o texto do Barthes, que é de onde o Peter começa a desterrar seu pensamento, avalio que uma boa caminhada pode ser com esse artigo aqui, da filósofa Jeanne Marie Gagnebin.
Mas, só não deixe de ouvir o vídeo do filósofo Peter Pálbert. É sensacional em como ele vai articulando um rizoma de pensadores e pensadoras sem perder o foco da questão central.
Para facilitar, eu ainda colarei aqui o texto todinho pra vocês.
COMO VIVER SÓ
E Deleuze sentiu que sua aula ia descarrilar, e antes de propor um intervalo, respondeu gentilmente,
”O problema não é que nos deixam sós, é que não nos deixam suficientemente sós”.
Não posso adivinhar o que esta resposta Zen, pode ter provocado no aflito interlocutor, mal sabia ele que alguns anos depois, numa entrevista chamada Abecedário, Deleuze definiu a tarefa do professor como sendo a de reconciliar o aluno com sua solidão.
“trespassados de palavras inúteis, de uma quantidade demente de falas e imagens, e que melhor seria arranjar vacúolos de solidão e de silêncio, pra que se tivesse por fim algo a dizer”.
E o próprio Deleuze nunca deixou de reivindicar a solidão absoluta. Mesmo nos personagens que privilegiou na Filosofia ou na Literatura, vemos essa nota voltar com insistência.
“I would prefer not to” (Eu preferiria não).
Com essa frase seca e lacônica ele enlouquece o seu entorno – o advogado não entende este empregado plantado atrás do biombo, pálido e magro feito uma alma penada, que mal fala, mal come, sem família nem amigos, que nunca sai, irremovível, que só repete: “Eu preferiria não”.
Com sua passividade ele esvazia a mola do sentido que garante a dialética do mundo e põe tudo a correr numa desterritorialização da linguagem, dos lugares, das funções, dos hábitos, ele não foge do mundo, mas faz o mundo fugir. Do fundo de sua solidão, tais indivíduos não revelam apenas a recusa de uma sociabilidade envenenada, porém são um chamamento para um tipo de solidariedade nova, o apelo por uma comunidade por vir.
Temos acesso às estratégias de exílio interno que uma criança inventa para evitar o homicídio que nos é proposto desde a mais tenra idade, fugindo a narrativa de si já sempre terceirizada pelos que nos “cuidam” e pelos que nos “amam”.
Pergunta Juliano:
Porque a assim chamada vida familiar, vida escolar e vida social, trituram a criança possível?
Por que sobrevivem apenas os falsários, os que se identificam com a criança morta?
Na esteira de Thomas Bernard, Juliano Peçanha se deu por tarefa denunciar o pacto da universal hipocrisia que assegura nossa existência social e cotidiana e desvela a argamassa metafísica que a cada instante nos impede de desabar, mas com isto paradoxalmente, vemos ruírem um a um, todos os personagens competentes que garantem
“o negócio da administração da vida”, como diz Juliano: pais, educadores, psiquiatras, socializadores, homens da cultura, todos os que fazem as vezes de carcereiros da vida, em tempos de mobilização total, de alcoolismo existencial, eis uma voz que introduz uma palavra de hesitação, de espera e de pressentimento a partir de uma reclusão necessária.
Mas, o que estaria em jogo nisso que ela chama de “pulsão anarquista” é uma resistência ao domínio aglutinante de Eros, feito de anexação e posse mortífera. Ao se desobrigarem da autoridade ou do amor que tudo abraça e paralisa, esses seres irredutíveis, empreendem sua encarniçada luta pela vida que outros confundem com uma luta pela morte.
“Quem está realmente vivo hoje?”.
Morte e vida designam naturalmente não fatos objetivos, mas posições existenciais subjetivas. O Filósofo esloveno indaga o seguinte: “E se só estivermos vivos quando nos comprometemos com uma intensidade excessiva que nos coloca além da vida nua?”. “E se ao nos concentrarmos na simples sobrevivência, o que perdemos na vida for a própria vida?
” E aí vem a pergunta chocante: “E se o terrorista suicida palestino, a ponto de explodir a si mesmo e aos outros estiver, num sentido enfático, mais vivo?”
“Não vale mais um histérico verdadeiramente vivo, no questionamento permanente da própria existência, do que um obsessivo, que evita acima de tudo que algo aconteça que escolha a morte em vida?”
Enquanto nos arrastarmos como mortos vivos e como zumbis pós-modernos, a vitalidade parecerá ter migrado para o lado daqueles que, numa volúpia de morte como no 11 de setembro, souberem desafiar nosso sobrevivencialismo exangue.
Segundo Zizek, “Somos os últimos homens de Nietzsche, aqueles que não querem perecer, e que prolongam sua agonia imersos na estupidez dos prazeres diários” é o que Zizek chamou de Homo Otarius e Gilles Chatelet, alguns anos atrás chamou de cyber-zumbis e que nós poderíamos chamar no nosso bom português de vida besta.
Inspirado no personagem de Joyce, Bloom seria um tipo humano recentemente aparecido no planeta e que designa essas existências brancas, presenças indiferentes, sem espessura, o homem ordinário. Bloom tem a tonalidade afetiva que caracteriza nossa época de decomposição niílista. Ele é o momento em que vem à tona nossa estranheza e inoperância, para além ou aquém de todos os problemas sociais de miséria, precariedade, desemprego, etc.
Bloom é a figura que representa a morte do sujeito e de seu mundo, onde tudo flutua na indiferença sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo de mercadorias infinitamente intercambiáveis e substituíveis. Pouco importam os conteúdos de vida que se alternam e que cada um visita em seu turismo existencial, o Bloom é já incapaz de alegria assim como de sofrimento, analfabeto das emoções de que recolhe apenas ecos difratados.
Seria de se perguntar, que modalidades de êxodo, de escape, de exílio voluntário ou involuntário, que modalidades de curto-circuito silencioso ou ruidoso, denunciam um tal contexto de sobrevivencialismo maciço por mais místicos, psicóticos ou suicidas que pareçam essas formas de êxodo; quais e quantos gestos solitários, mas também experiências instituídas, que lhes fazem eco, reivindicam uma distribuição outra, entre o que está vivo e o que está morto, entre viver e sobreviver, entre aquilo que é desejável e aquilo que é intolerável, tentam reinventar a relação entre solidão e vida coletiva?
E a minha é a seguinte: o psiquiatra e psicanalista Jean Oury, que dirigiu juntamente com Felix Guattari, a clínica de La Borde no Sul da França, praticamente se internou com seus pacientes nesse castelo antigo e decadente.
A questão que o assediou pelo resto da vida, não é indiferente ao destino dos Barteblys, dos Gombros e dos Blooms, que cruzamos a cada esquina nesse grande manicômio pós-moderno que é o nosso. E as perguntas de Jean Oury em seminários dados nos anos 70 – 80, são as seguintes – e tem a ver com o contexto especifico de uma clinica psiquiátrica – pergunta ele: “Como sustentar um coletivo que preserve viva a dimensão de singularidade? Como criar espaços heterogêneos com tonalidades próprias, atmosferas distintas permitindo que cada um se enganche a seu modo? Como manter uma disponibilidade que propicie os encontros, mas que não os imponha uma atenção, que permitam contato e preserve a alteridade? Como dar lugar ao acaso sem programá-lo? Como sustentar uma gentileza que permita a emergência, de um dizer ali onde cresce o deserto afetivo?”
Eu concluo, seria preciso portanto, partir das vidas precárias dos desertores anônimos, dos suicidados da sociedade e acompanhar suas solidões, mas também do fundo delas deixar entrever os gestos evanescentes que reinventam uma simpatia e até uma solidariedade no contexto bio-político contemporâneo que é o do seqüestro dessas conexões.
Entre um Bartleby, um Gombro, um Poroto, e mesmo um Bloom, todos esses nomes “beckettianos”, entre eles todos ou um de nossos louquinhos, vejo por vezes o esboço do que se poderia chamar de uma comunidade incerta, não sem conexão com aquilo que obcecou a segunda metade do século XX de Bataille a Agamben. A saber, e tudo isso que vou dizer agora são diferentes nomes que cada um dos pensadores deu a isso, a “comunidade dos que não tem comunidade”, a “comunidade dos celibatários”, a “comunidade inoperante”, a “comunidade impossível”, a “comunidade eletiva”, isto é, que nada tem a ver com a raça, o sangue ou a etnia. Barthes chamou isso, a seu modo e naquele momento, de socialismo das distâncias.
Cortázar chamou a isso, num outro contexto, de Kibbutz do desejo. Gilles Châtelet retomou a consigna comunista, diz ele “a cada um segundo a singularidade”. Passado esse tempo, eu não sei que nome teria isso que eu tentei descrever e que talvez vem vindo, uma coisa é certa, diante da comunidade terrível que se alastrou pelo planeta feita de vigilância recíproca e frivolidade, esse seres que eu tentei descrever (mas será que são apenas eles?) necessitam de sua solidão para ensejarem sua bifurcação louca e para conquistarem o lugar de suas simpatias vivas.
E aqui o relato de alguém que estava presente neste dia
Viver junto, viver só, só viver
Sérgio Basbaum (http://forumpermanente.tangrama.com.br/event_pres/simp_sem/semin-bienal/bienal-vida/vida-doc/conf6)
Certa vez, a propósito do conhecido isolamento de Jean-Luc Godard, Gilles Deleuze descreveu uma solidão rica, “povoada”. Peter Pal Pélbart fez menção a essa entrevista, numa das muitas referências evocadas em sua fala no Fórum da Bienal, no Porão da Bienal, no dia 5 de agosto passado — batizada, ironicamente, Como viver-só.
Trata-se do reverso necessário — do contracampo, diria Godard — ao mote escolhido por Lisette Lagnado para a presente Bienal de São Paulo. Bienal de um tempo em que “nos arrastamos como zumbis pós-modernos”, num “sobrevivencialismo pós-metafísico”, no dizer sombrio de Slavoj Zizek, que Pelbart também retoma. Juntos, campo e contracampo enfeixam a dialética aparentemente inescapável da contemporaneidade, que a fala do filósofo procura tatear, através de sua própria solidão, povoada de “Bartlebys”, “Blooms”, “Gombros” e “Porotos”: “Como sustentar um coletivo que preserve viva a dimensão da singularidade?”.
No contexto descrito por Zizek — sob o sítio da reordenação rizomática do controle do vivível, sob um viés totalizante de uma escala nova, de uma violência silenciante tão anunciada e previsível como desconhecida –, a arte se coloca a mesma questão e se impõe como experiência cada vez mais necessária.
Já não sabemos estar sós, lembra Pelbart. Vivemos numa sociedade em que o “capitalismo em rede enaltece ao máximo as conexões e esconjura a solidão”, e nessa hiperconectividade não pode haver singularidade, há só a “‘solidão negativa’, socialmente produzida”, não a “solidão positiva” de uma resistência à homogeinização, à desertificação do vivido pela sua iluminação ao mesmo tempo indiferente e totalizadora.
O estar só impõe um saber dançar na obscuridade, brincar em mundos não iluminados — ali se encontram luzes de uma natureza outra: o poeta Itamar Assumpção dizia “É preciso estar escuro/ para eu dormir em paz/ mas dentro de mim há uma luz/ que eu não consigo apagar!”. Também a solidão — certamente insone — de Itamar era ricamente povoada.
Num contemporâneo de tal modo reduzido àquela dimensão “onde tudo flutua na indiferença sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo de mercadorias” — bem como pessoas — “infinitamente intercambiáveis e substituíveis”, habitado de Blooms e outros Homo Otarius — solidões menos ou mais reais do teatro semi-adormecido das negociações da cretinice normativa cotidiana que sustenta o real –, o engessamento do fluxo da subjetividade, e a imanente violência que daí deriva, não apontam qualquer horizonte existencial a se abraçar.
Mas seria mesmo uma questão dialética? A tese do coletivo — esse coletivo morno, adormecido em redes de controle — versus a resistência misteriosa, que implode a lógica do real — a resistência de um Bartleby, um Gombro ou um Poroto e de outras subjetividades irrecuperáveis pela ordem vigente?
Não seria mais uma questão de pensar numa “multilética” (que me perdoem os filósofos o abuso da palavra), já que as solidões povoadas são múltiplas, exponenciais, de uma ordem tal que a mera oposição do par viver-junto/viver só não pode dar conta? No recuperar a necessidade e a possibilidade do espaço transbordante das solidões povoadas, o viver-só de que fala Pélbart implode em tantas direções a hegemonia do sentido de um real esvaziado pelo cálculo do vivido, que a dialética da luz e da sombra, do coletivo e do singular, parece, num relance, tornar-se ela mesma prisioneira da armadilha que denuncia.
Mas não é assim. Pelbart censura também essa mesma recaída numa dicotomia simplificadora em Sloterdijk, que tenta superar nosso “solipsismo antropológico” por meio de um “ser dois”, por uma “metafísica de duplo” que é preciso, justamente, ultrapassar. E é curioso notar como Merleau-Ponty — esse filósofo às vezes esquecido no aparente radicalismo dos autores pós-modernos e seu embate com um mundo bem mais complexo e cheio de especificidades –, já havia proposto pensar o real como empreendimento coletivo, cuja riqueza de sentido deveria decorrer da pluralidade das singularidades, de uma intersubjetividade aberta, inacabada.
Não há nada nesse Merleau-Ponty que se contraponha ao Deleuze que serve de guia ao viver-só de Pélbart: preservar a riqueza de sentidos do vivido é abrigar, neste vivido — na negociação dos sentidos do real — múltiplas subjetividades, às quais devemos ser capazes de ofertar ao menos a possibilidade de constituir não simples conectividades eletrônicas, mas redes de afetos: o “desafio do solitário (…) é sempre encontrar ou reencontrar um máximo de conexões, estender o mais longe possível o fio de suas ‘simpatias’ vivas”, diz, retomando Lawrence.
Temos que ser capazes de acolher, no solo mas também no vôo, o Superoutro de Edgard Navarro (num filme excepcional de 1987), que salta do alto do Elevador Lacerda. enquanto grita: “Abaixo a lei da gravidade!”. É porque o coletivo quer ser homogêneo e as singularidades são, ou deveriam ser, inúmeras, que não se pode falar em dialética.
E quando se toma a descrição de Pélbart do universo experimentado por aqueles que viveram a clínica La Borde, com Félix Guattari — Jean Oury, Marie Depussé — ou dos participantes do singular grupo de teatro que Pélbart coordena — composto de usuários de saúde mental –, parece mesmo que o limite tênue entre um sentido de realidade e loucura, essa linha instável e tão difícil de habitar, é o único lugar em que o mundo é ainda vivível. É apenas diante da visão dessa implosão dos sentidos, do alívio do vazio, do êxtase do nada e da alegria da presença que daí deve emergir — da perda de todo o real e sua recuperação afinal como o único lugar possível — que se pode falar em “viver junto”, em partilhar o mundo.
Mas aí, talvez estejamos, finalmente, no domínio da proposição artística e daquilo que se configura uma das tarefas da arte na contemporaneidade.
Mas Merleau-Ponty também disse certa vez: “quando percebo o outro, há um grau de violência que se torna impossível”. Aqui, o conflito contemporâneo posto por Pelbart e a problemática da arte se entrelaçam: intervir no campo sensível, guerrilhar na arena da percepção, parece ser um caminho para que se abram as estreitas sendas que possivelmente reconciliam meu mundo e o dos meus semelhantes.
Porque se estamos discutindo uma disposição simples, aquela de “perceber o outro”; e se, ao que parece, não estamos, no nosso registro cotidiano, aptos a fazê-lo, é porque nossos laços perceptivos, os “fios que me ligam ao real”, estão de algum modo desbalanceados — laceados, frouxos, alguns: aqueles que me vinculam à vida que merece ser vivida, que me ligam aos meus semelhantes; tensos, rijos, outros: aqueles que me prendem nas redes de controle, nas competições por produtividade, na devora de tudo aquilo que realmente interessa, em nome dos desejos inventados pelo espetáculo — a sociedade do controle é também a da alienação do próprio desejo, e se não percebo o outro é porque não percebo a mim mesmo.
Enfim, se, como diz Pélbart “quando a consistência das formas que antes asseguravam alguma consistência ao laço social apenas reitera a gregariedade atomizada, cabe indagar o que poderia ainda sacudir-nos de tal estado de letargia”, parece ser ainda a arte a melhor resposta de que dispomos.
Não que a questão se esgote na dimensão poética e não transborde para a dimensão política — e ainda: como se a intervenção no terreno do sensível não fosse essencialmente política, já que aí se define a gênese dos sentidos do real, a possibilidade mesma da presentação de um mundo como espaço vivível, que se constitui no trânsito polifônico das diferentes subjetividades; não se trata de crer que a poesia, por si própria, possa nos salvar: trata-se, antes, de perceber que, sem ela, resta pouco o que salvar.
Em meio a tais embates de constituição de sentido, em meio à batalha pela posse da experiência que tensiona hoje ao limite a questão mesma das instituições que têm se apropriado da experiência inaugurada pela obra de arte, Deleuze-Pélbart reivindicam um mundo em que se possa ir buscar uma solidão “suficiente”, a “solidão absoluta” que é ao mesmo tempo “a mais povoada do mundo”. Ao ponto em que tal personalização absoluta se converta novamente em uma conexão completa, “O ponto mais singular abrindo para a maior multiplicidade: rizoma.
Por isso cabe sair do ‘buraco negro do nosso eu’ (…) desfazer o rosto, tornar-se imperceptível, e pintar-se com as cores do mundo”: o retornar ao mundo do viver junto é aí um dissolver-se que não pode se sustentar na idéia tradicional de sujeito, essa criação única da cultura ocidental — portanto tampouco na dialética que deriva desse sujeito, que constitui, por si só, autonomamente, o sentido do mundo.
Tampouco responde a essa superação do sujeito o agenciamento coletivo puro e simples: crimes demais foram e são cometidos por essa alienação da singularidade em nome da força do coletivo — e, de mais a mais, já dizia Nélson Rodrigues, “toda a unanimidade é burra”. No vazio da impossibilidade do sujeito, e dos acordos tenebrosos que por vezes articulam as pulsões coletivas, a impossibilidade da simples dialética do viver junto versus viver-só não pode reunir “o cúmulo da solidão desejante e o cúmulo do socius”, como sugeriu Guattari.
Talvez, conquistar a atenção que agencie a “polidez” (mas também a “delicadeza”, a “gentileza” ou a “suavidade” — e talvez Pélbart me permita acrescer aqui um “cuidado”), em que cada um possa “se apoderar de outro no seu mundo, conservando-lhe, porém, as relações e o mundo próprios”, como propõe Deleuze, demande primeiro dissolver a própria relação campo-contracampo em que se coloca a questão, abrindo uma linha de fuga que desloque, ou desterritorialize o problema. Possivelmente, a poesia possa fazê-lo.
Na década de 1970, Gilberto Gil — então poeta, que, aliás, logo seria bastante criticado justamente por sua suposta a-politização — revirou o sentido de uma bela canção e arrancou dali a inversão preciosa que abria um território de significação renovada: eu preciso aprender a ser só tornou-se eu preciso aprender a só ser.
À generosa — porém binária — dialética do viver-junto e do viver-só, vem somar-se, então, como um presente do poeta à implosão das amarras da lógica, a fórmula delicada do só-viver.
Inteh