De Sábado pra Domingo, de uma semana atrás, acordei meia noite.
Sei que acordar esse horário não é grande coisa para quem tem uma insônia voraz. Acontece que não foi insônia ou sono recortado diabolicamente em horários totalmente estapafúrdios.
Enfim, acordei meio sem eira nem beira e assustado. Coração acelerado, pulei da cama como um náufrago mas sem boia de salvação, jogando-me no mar frio do chão do quarto para fugir para fugir das balas que corriam de uma lado a outro da janela do quarto onde durmo. No chão, lembro que minha companheira dorme tranquila a estibordo da cama e, exasperadamente e como um macho alfa protetor das donzelas -supostamente – periféricas tento, em vão, puxar seu braço. Não consigo achá-la e algo vai, devagarinho tomando meu pensamento.
Algo, suavemente, diz-me que algo não está certo.
Com as costas geladas e com o peito desacelerando, o cérebro vai tentando dizer ao resto do corpo que os estampidos não estão tão agudizados como de costumes e lembra-me que eu beijei minha companheira antes dela pegar o elevador e ir para o trabalho. Senhor de si, ele faz questão de lembrar-me que naquela vez, lá há três semanas atrás, que os tiros de AR -15 e .50 que vararam pela madrugada não tinham essa identidade sonora tão em sol maior. E assim, de estribilho em estribilho, percebo que as ideias estão fora do lugar e as balas em verdade podem ser algo mais doce. A pólvora mais adocicada de todas, os fogos de artifícios.
Dias depois descobri que ao menos no final de semana, os fogos são um tradição peculiar do comércio que destrói tanta gente brasileira. Engraçado que depois do episódio das balas de festim, pensava que os tais fogos, quando um dia escutei-os em um longínquo final de semana, tratava-se de alguma Igreja Católica tendo por padroeiro algum Santo com fiéis ricos ou algum Terreiro em festa, também patrocinado por pessoas com vintém na carteira. É tragicômico pensar que os caras da boca de fumo tocam todo esse zaralho, acordando 6.742 pessoas do meu alvissareiro bairro só para avisar aos seu clientes que os quitutes estão no tabuleiro…
Contudo, poderia ser pior.
O meu desastre límbico foi, obviamente motivado pela intensidade sonora do “jingle acústico luminoso”, porque partes de mim acreditaram que mais uma vez era o povo do bairro do Arenoso invadindo novamente o vizinho bairro do Beiru, antes cujo nome era o moribundo Presidente que não foi… Tacrendú para os íntimos.
Salvador e quase todas as cidades da Bahia vivem uma intensa guerra territorial entre facções criminosas nacionais, que possuem seus representantes locais por aqui. São quase uma dezena de grupos lutando entre si, bairro a bairro, cidade a cidade, viela a viela. Corpos, muitos corpos e zero vírgula zero de esperança de uma vida menos abjeta e menos insuportável para quem mora nas regiões onde a luta é mais agudizada. Quase, segundo os dados do CENSO 2022 e a propia consolidação realizada pela Prefeitura de Salvador , 60k pessoas deixaram de viver nesses bairros que fazem parte da Prefeitura Bairro do Cabula. Óbvio que não é somente fruto do tráfico de drogas mas, é nítido que as pessoas procuram outros locais “mais tranquilos” que essa chapa quente que virou isso aqui.
A verdade é que a vida, por toda cidade e sem exceções, virou um inferno.
O pior de tudo é que realmente não consigo pensar em como é que políticos tacanhos e uma sociedade ensimesmada irá enfrentar traficantes que aparentam serem mais criativos e mais vívidos do que o resto da sociedade.
Todavia, inexoravelmente a vida segue.
O mais legal de tudo é que hoje, de Domingo para Segunda-Feira, agorinha e sem hiato semanal que esse texto percorreu, os fogos aconteceram, eu acordei mas, o meu cérebro e outras partes de mim, aprenderam direitinho e ficaram ali, tranquilas, tranquilas, sem stress nem nada.
São só fogos.